Para M. Pereira
Todo mundo sabe tudo
menos eu
Todo mundo está convicto
menos eu
Todo mundo acerta
menos eu
Todo mundo tem fé no que diz
e eu me sinto o único ateu
Todos casaram com a Certeza
somente eu flerto com a Dúvida
Todo mundo vai para frente e avante
só eu recuo
Todo mundo cumpre o seu destino
só eu ando em círculos
Todo mundo vence
só eu fracasso
Todo mundo jura que já se encontrou
só eu me procuro
Todos navegam com um GPS preciso
somente eu traços rotas em um papel amassado
Ninguém se permite
apenas eu
Ninguém experimenta
apenas eu
Ninguém corre perigo
apenas eu
Todo mundo tem os pés no chão
apenas eu alço voos de Ícaro
Todos seguem reto toda vida
somente eu tropico, titubeio e vacilo
Só eu arrisco, só eu petisco
só eu coloco tudo a perder,
mas é que quando me perco
eu me encontro e me invento
e nesse descompasso de quedas e levantes
vou me modelando do barro
sopro nas minhas narinas o fôlego da vida
e me crio à imagem de mim mesmo
que vai existindo aos poucos
como um desconhecido que desenha no rosto
os esboços que projeta de si
à medida que se apalpa perante um espelho
Corto a árvore da qual faço minha cruz
e me deixo morrer no Calvário
só para depois mover a rocha
que fecha o meu sepulcro
E nesse descompasso de morrências e vivências
vou me tornando império e Estado de mim mesmo
Sou um califado a expandir-me para além dos desertos,
mas sou mais que a minha descoberta:
sou a minha conquista!
Sou o invasor amigável
sou o estranho que sempre volta para o ninho
sou o estrangeiro com quem mais me familiarizo
sou o perdido que retorna ao seu caminho
E se hoje lamento não ter sido ontem
é também hoje que anseio pelo que serei
E se amanhã bem cedo
eu de novo cair desolado
levantarei mais uma vez
e ficarei em vigília até ser levado
pelas imagens oníricas da noite,
pois não há nada mais real
do que os sonhos que nos despertam
à flor da pele
Comentando o Poema Divã
Esse poema é sobre meu processo psicanalítico e a sensação que tenho de “desafinar no coro dos contentes”. A inspiração direta veio no primeiro dia em que deitei no divã e disse para minha analista que todos me parecem convictos e crentes de certeza e somente eu vivo cheio de dúvidas. Ela disse que eu sinto isso por estar em análise.
Dentre as referências históricas do poema está a visão triunfalista de história presente nas fontes árabes medievais sobre a expansão islâmica. Os cronistas árabes medievais utilizavam o conceito alcorânico fatḥ (فتح) – que significa abertura, conquista, vitória – para manifestar a crença de que o crescimento dos domínios islâmicos pelo mundo e o sucesso político do Islām eram vontades de Deus. Esse é um ponto de vista histórico de vencedores árabes e muçulmanos. Veja um artigo meu sobre esse tema clicando aqui (a partir da página 10).
Dentre as referências mitológicas e religiosas do poema estão a criação de Adão no Jardim do Éden, a morte e a ressurreição de Cristo e a tragédia de Ícaro, personagem da mitologia grega que, ao tentar fugir da Ilha de Creta voando com asas de penas de gaivota e cera de abelha, voou tão alto que suas asas derreteram com o calor do Sol, então ele caiu e morreu no mar Egeu. O mito de Ícaro é sobre pagar alto pela realização de um sonho.
Uma curiosidade: a palavra “divã” vem do árabe dīwān (ديوان), que possui 3 significados segundo o professor Adalberto Alves no seu Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa (2018, p. 441): arquivo (1), no sentido de documentos de um conselho de um sultanato turco ou de edifício desse conselho; cancioneiro de um poeta árabe (2); e cama baixa com fundo de arame coberta por almofadas e que servia como sofá (3). Nos consultórios de psicanálise, os divãs são presentes no formato de um sofá-cama, como no 3º significado. As almofadas também são comuns nas tendas e residências árabes desde os tempos medievais.
Fico também pensando que se o que sai da boca de um analisando deitado no divã, muitas vezes em termos metafóricos e simbólicos, não poderia também ser considerado um cancioneiro poético, conforme o 2º significado acima.
Quem mais se identifica com a sensação de ser um desafinado no coro dos contentes?
Referências
ALVES, Adalberto. Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, S.A., 2013.
Como referenciar este poema?
DAMASCENO, Thiago P. M. Divã. História na Medina (Poemas), 08 ago. 2022.
Disponível em: https://historianamedina.com/poema-diva