Se 2020 fosse servido como prato em um restaurante, com certeza carregaria no seu título a expressão “à la Kafka”, fazendo referência a Franz Kafka (1883-1924). Kafka foi um importante escritor tcheco de língua alemã, criador de clássicos que abordam o absurdo e a alienação humana como A Metamorfose (1915) e O Processo (1925).
Não testemunhei horrores globais como as duas guerras mundiais e outras pandemias, assim, 2020 está marcado para mim – e para muitos outros brasileiros e brasileiras com sensibilidade social – como um ano de absurdos! É um ano que vai se encerrando mais com agonia e inquietação do que com esperanças…
Não bastassem a pandemia e as enormes cifras diárias de mortos, chefes de quadrilhas sádicos nos governam. Não bastassem os escândalos de corrupção em que sempre estão envolvidos, essas figuras ainda são reverenciadas por uma horda de idiotas alimentados por ódios e fake news. Se esses bandidos permanecem no poder até agora, o que os próximos precisarão fazer para serem retirados? Matar suas mães a pauladas ao vivo no Fantástico?
Nosso país está podre até os ossos. Nossos governantes são criminosos, nossas instituições são falhas e corruptas, verdadeiras máfias. Nossa moral pública é perversa: estão normatizados o racismo, o estupro, o feminicídio, a intolerância religiosa, a xenofobia e demais crimes. Nossa democracia está morta e na cova, mas ainda insepulta, pois cada absurdo nosso de cada dia é uma nova pá de terra.
É como se vivêssemos no nosso próprio enterro sem fim!
Está tudo tão corrompido e às avessas que este meu discurso pode ser confundido com o discurso de algum direitista mau caráter que visa dar palco a algum salvador da pátria que, claro, de salvador não teria nada. Contudo, ainda bem que sou de esquerda e esclarecido politicamente. Tão esclarecido que às vezes me pergunto se a ignorância não seria mesmo uma benção…
Nesse balaio de gatos alucinados que virou o Brasil ainda estão os terraplanistas e os estúpidos com mais medo da vacina do que do próprio corona vírus: é uma alienação enorme! A extrema direita corrompeu tudo, até mesmo símbolos nacionais como a bandeira, pois não se pode mais andar por aí com a bandeira do país sem ter medo de ser confundido com algum desses patéticos da direita que relincham em português!
Mas calma: se um dia você se sentir idiota, lembre-se que tem quem ache Olavo de Carvalho um excelente professor!
Como historiador, sei que é comum que pessoas que testemunham momentos de crise social vejam seu tempo como “o fim do mundo”. Apesar de conhecer essa constatação de forma objetiva, o sentimento de fim do mundo habita meu ser. Será que nossa civilização dura ainda uns dois séculos? Creio que não. Do jeito que o neoliberalismo explora a nós e aos recursos naturais, nossas expectativas de vida enquanto civilização andam baixas.
Como eu disse no começo do texto, 2020 se encerra mais com agonia e inquietação do que com esperanças, pois são muitos os problemas e absurdos sociais pelos quais passamos. Assim, qualquer felicitação educada e tradicional de “Feliz ano novo!” para mim serão meras palavras jogadas à tempestade.
Os votos que faço nesta crônica para 2021 é que consigamos sobreviver, pois viver em paz seria um luxo. Espero que o futuro mostre que esta minha desesperança está errada.
“Eu tenho a verdadeira sensação de mim mesmo apenas quando eu estou insuportavelmente infeliz” (Franz Kafka)
Como referenciar esta crônica?
DAMASCENO, Thiago P. M. 2020 à la Kafka. História na Medina (Crônicas), 28 dez. 2020.
Disponível em: https://historianamedina.com/cronica-2020-a-la-kafka