Quem nunca sentiu uma melhora na saúde após tomar um chazinho da vovó que atire a primeira pedra… Dia desses, andando pelo centro de Goiânia, deparei-me com uma banca de remédios naturais que existe desde o Neolítico. Sempre passei por lá, mas naquele dia em específico a pequena loja brotou do Cosmos como uma epifania, como se os céus tivessem lançado um grande feixe luminoso revelando aquela banca e uma verdade profunda de essência histórica e mundial: a cultura medicinal popular é um sinal de civilização!
Não preciso falar sobre a validade do poder curativo das plantas. Há muitas pesquisas científicas que comprovam isso e nós sabemos disso pela experiência. Refletirei aqui sobre o quanto esse saber popular é sofisticado e um indício de inteligência humana vivendo em sociedade.
As descobertas das forças curativas de plantas, raízes e troncos são resultados de anos e anos de observações, testagens (com acertos e erros), ajustes e transmissões desses conhecimentos de geração em geração. Isso só é possível em contextos em que humanos possuem linguagem e organização social sedentária que possibilita a agricultura. Esses feitos foram características do período Neolítico, ocorrido entre 7 mil e 2.500 a.C. Com a sedentarização dos grupos humanos e o desenvolvimento da agricultura, crescemos em número, construímos as primeiras cidades e realizamos feitos notáveis que nos destacaram perante os outros animais.
Usei os verbos na primeira pessoa do plural porque essas experiências fizeram e fazem parte da humanidade como civilização. É uma história que nos pertence. Graças a essas descobertas chegamos até aqui e estamos indo além (para o bem e para o mal).
Essas percepções de “conhecimento civilizatório” e “legados históricos globais” são ainda mais observáveis nestes tempos de globalização, onde há um grande fluxo diário de compartilhamento de saberes por meio da Internet. Outro dia desses, por exemplo, aprendi a fazer coalhada seca à moda libanesa com os vídeos de dois descendentes de árabes. Esse fio global de inteligência que nos une vem desde as épocas em que nossos antepassados desenhavam seus cotidianos nas cavernas e continuou à medida que mais avanços civilizacionais foram sendo inventados, como as escritas e o comércio. A globalização é recente, mas os contatos entre diversas regiões do mundo vêm desde a Antiguidade por meio, principalmente, das rotas comerciais.
E dentre esses saberes históricos está a medicina popular das plantas, nascida de muito tempo de investigação e de prática, com “metodologia” própria inspirada, dentre outros aspectos, na observação e na manipulação dos elementos da Natureza. Muitos riscos foram experenciados para se descobrir o poder curativo e também alimentício das plantas. Imagine o trabalho que foi descobrir que, para se preparar a maniçoba, era preciso cozinhar a folha da mandioca moída (maniva) por pelo menos sete dias para que fosse retirado o veneno da folha! No caso, o ácido cianídrico. Por processos semelhantes, mas creio que menos letais, devem ter passado os experimentos populares com boldo, camomila, sálvia, dentre outras plantas, hoje conhecidas por suas vantagens medicinais.
Esse conhecimento dos benefícios dos elementos naturais é mais associado às nossas avós e avôs ou a comunidades mais tradicionais dos interiores ou a comunidades indígenas. Isso tudo é folclore, ou seja, é sabedoria popular. O conhecimento folclórico é parte da identidade de um povo. É algo que vem da vida e gera vida, sempre em constante movimento. E não só o conhecimento medicinal das plantas, mas também nossos mitos e lendas, provérbios, culinárias, músicas, causos, contos e poesias populares fazem parte dos nossos folclores, que variam por região. Cada país tem os seus folclores, alguns com certos aspectos semelhantes a outros folclores ou não. Também há folclores que influenciam uns aos outros, retomando àquela ideia de transmissão de saberes no decorrer história. O conhecimento folclórico, sendo expressão cultural, é tão importante quanto o conhecimento científico. Apesar de nascerem de processos diferentes, esses saberes não são, necessariamente, rivais entre si. Em muitos contextos até se complementam.
Como seres pensantes e dependentes da Natureza, devemos respeitá-la e cuidá-la como nossa Grande Mãe, figura presente em muitos mitos. Afinal de contas, se nossos passado e presente vieram e vêm, em parte, dela, o futuro também virá.
Como citar esta crônica?
DAMASCENO, Thiago P. M. Cultura Medicinal Popular. História na Medina (Crônicas), 18 jan. 2022.
Disponível em: https://historianamedina.com/cronica-cultura-medicinal-popular