Publicado originalmente em 17 de março de 2021.
Muito se fala sobre folclore, principalmente agora com a série Cidade Invisível, de grande audiência na Netflix. Contudo, ainda é comum o entendimento de folclore somente como crença em entidades mágicas como o Saci Pererê, a Cuca, a Mula Sem Cabeça, dentre outras. Como veremos neste artigo os encantados são apenas uma parte da riqueza que é o folclore, que abrange muitas expressões culturais, tanto imateriais como materiais.
O Conceito de Folclore
O conceito mais clássico de folclore foi criado pelo escritor, antiquário e folclorista britânico William John Thoms (1803-1885) em 1846. Segundo esse intelectual, folclore pode ser definido como “sabedoria do povo” ou “conhecimento do povo”. Essa designação é derivada das raízes saxônicas folk (povo) e lore (saber). Por isso o termo era grafado inicialmente como folk-lore. Esse nome se transformou no nosso português “folclore”.
Com o passar do tempo e com as pesquisas na área, discussões sobre essa definição ocorreram, como é comum nos estudos das ciências, incluindo as Humanas. Algumas questões feitas a partir do conceito de Thoms foram: Que saber popular compõe o folclore: a cultural imaterial – também chamada de “espiritual” – ou somente a cultural material? Quem é o povo? O que seria popular?
Como aponta Roberto Benjamin (2011), inicialmente a ideia de “povo” para os estudos folcloristas remetia aos sujeitos das camadas sociais mais baixas das sociedades do campo, por isso não se considerava o saber popular das cidades, que hoje já é amplamente aceito. Por exemplo, a Loira do Banheiro, terror do Ensino Fundamental, é uma personagem do nosso folclore urbano. Também se passou a incluir a cultura de povos primeiros, como os indígenas, por isso sua cultural espiritual é muito presente no nosso folclore com entidades como Tupã, Jurupari, Anhanga e Curupira, como registrou o historiador e folclorista potiguar Luís da Câmara Cascudo (1898-1896) em sua obra Geografia dos Mitos Brasileiros (2002).
Em nosso país, o primeiro conceito de folclore levado em conta para fins de estudos acadêmicos foi o presente na Carta do Folclore Brasileiro, validada no I Congresso Brasileiro de Folclore, realizado entre os dias 22 e 31 de agosto de 1951 na cidade do Rio de Janeiro. Essa carta reconhecia o estudo das culturas populares como parte das ciências antropológicas e culturais. Além disso, o documento defendia que o folclore deveria ser observado em seus elementos materiais e espirituais, pois o fato folclórico foi reconhecido como as formas de pensar, sentir e agir de um povo. Consideração válida ainda hoje.
Contudo, como aponta Benjamin (2011), apesar da indiscutível relevância dessa carta de 1951, ela possuía algumas ambiguidades, imprecisões e omissões. Esses elementos foram corrigidos e atualizados durante o VIII Congresso Brasileiro de Folclore, realizado entre 12 e 16 de dezembro de 1995 na cidade de Salvador. Nesse congresso participaram estudiosos de diferentes regiões do país atuando sob as Recomendações da Unesco sobre a Salvaguarda do Folclore definidas na 25ª Reunião da Conferência Geral da organização, feita em Paris em 1989 e publicada no Boletim nº 13 da Comissão Nacional de Folclore em janeiro/abril de 1993.
Assim, essa carta de 1995, ainda vigente, confirmou alguns elementos do documento de 1951 e desenvolveu outros, contribuindo para um entendimento mais amplo dos elementos folclóricos, levando em conta suas dinamicidades e variedades regionais. Desse modo, essa última carta ressalta o folclore como parte do legado cultural vivo de um povo, capaz de aproximar grupos sociais e afirmar a sua identidade cultural.
O Capítulo I – Conceito dessa carta define o folclore do seguinte modo:
1. Folclore é o conjunto das criações culturais de uma comunidade, baseado nas suas tradições expressas individual ou coletivamente, representativo de sua identidade social. Constituem-se fatores de identificação da manifestação folclórica: aceitação coletiva, tradicionalidade, dinamicidade, funcionalidade. Ressaltamos que entendemos folclore e cultura popular como equivalentes, em sintonia com o que preconiza a UNESCO. A expressão cultura popular manter-se-á no singular, embora entendendo-se que existem tantas culturas quantos sejam os grupos que as produzem em contextos naturais e econômicos específicos.
Além dessa conceituação que leva em conta as múltiplas manifestações da sabedoria popular, o documento de 1995 também considera que os estudos folcloristas fazem parte das Ciências Humanas e Sociais, devendo ser realizado conforme as metodologias dessas ciências. Logo, estudos nessa área são “pratos cheios” para nós, historiadores, e para nossos colegas das Humanidades como um todo.
Características do Folclore
Atualmente, é consenso que o folclore engloba vários aspectos da cultura popular como artesanato, culinária, arquitetura, fabricação de instrumentos musicais, músicas, festividades, etc., ou seja, aspectos materiais e imateriais. Várias características antes consideradas inerentes às culturas populares também foram relativizadas. Por exemplo, o folclore não tem apenas criação anônima, mas também autoral, como no caso dos artesanatos e das poesias repentistas. O folclore também precisa de agrado coletivo ou prática generalizada. Criações autorais com aceitação coletiva também se tornam folclore, pois ingressam no patrimônio de um povo, podendo ter acréscimos, variações e recriações. Podemos ver exemplos disso nas reinterpretações de músicas e remakes de filmes e séries clássicas.
Os conteúdos folclóricos são transmitidos oralmente e por escrito. Não se aceita mais uma divisão rígida entre esses dois campos, pois fazem parte do folclore a literatura de cordel e outras manifestações escritas. Também já se sabe que matrizes escritas são presentes na produção oral, pois há casos em que a divulgação oral de um conhecimento teve sua fase de transmissão por escrito. Um exemplo claro disso está nos folclores árabe e persa com a clássica obra Mil e Uma Noites (ou Livro das Mil e Uma Noites). Segundo seu tradutor para o português, o professor de Literatura Mamede Mustafa Jarouche (2006), essa conhecida coletânea de contos populares era, inicialmente, um trabalho elaborado por escrito. Posteriormente, a obra foi incorporada pela oralidade, e não o contrário, como se pode pensar. A apropriação dessas histórias escritas pelos narradores de rua, desde o século IX, influenciou nas posteriores compilações escritas das Mil e Uma Noites, cujos primeiros manuscritos árabes datam dos séculos XII/XIII. Nesse caso, podemos perceber a interação complexa entre cultura letrada e cultura oral, descontruindo a ideia comum de que a fonte original de muitas histórias escritas é a oralidade.
Outras características importantes para o atual entendimento sobre o que é folclore são a antiguidade e a tradicionalidade e dinamicidade. Antes se postulava que os fatos folclóricos deveriam ser antigos por excelência, mas hoje essa ideia caiu por terra, pois também devem ser consideras as novas criações populares. Um dos casos é o já comentado folclore urbano. Considerar o tradicional como oposição pura ao novo, negando sua dinamicidade, também não é mais válido para se pensar o folclore, pois ele não está parado no tempo, mas sim sendo constantemente alimentado por fatos novos, pois a criação popular não cessa. Por isso, como explica Benjamin (2011, p. 2), é melhor pensar a tradicionalidade do folclore como uma “continuidade, onde os fatos novos se inserem sem uma ruptura com o passado, mas que se constroem sobre esse passado”. Alguns exemplos: gírias acrescentadas a contos antigos e a fotografia substituindo a escultura do ex-voto.
Os fatos folclóricos também têm funcionalidades, não existindo isolados, mas como parte de sistemas culturais que remetem a certos contextos sociais. Por exemplo, a criação e as recriações de mitos como o Saci têm relações estreitas com as experiências históricas da população negra.
Por último e não menos importante, a característica da regionalidade. A expressão folclórica nasce em uma comunidade/localidade. Contudo, essa mesma expressão pode ser encontrada em locais diferentes e distantes com algumas modificações. Estudos demonstram que isso pode se tratar de variantes ou expressões com origem comum, mas que foram sendo reinterpretadas e recriadas em lugares diferentes, absorvendo características próprias desses lugares, causando assim as variações. Um exemplo claro disso é o lobisomem, que varia conforme a cultura e a época que o divulga.
Conclusão
Em suma, o folclore é um conjunto de manifestações culturais que não deve ser entendido como algo essencialmente antigo e estático no tempo, mas como uma fonte de conhecimento que é constantemente alimentada pelas novas criações e interpretações da sabedoria popular. Por sua vez, esses novos conhecimentos do povo também são influenciados por expressões anteriores. O folclore, enquanto campo de criações e reinterpretações, é um movimento de mão dupla.
Referências
BENJAMIN, Roberto. Conceito de Folclore. Projeto Encontro com o Folclore. Unicamp, 2011.
Disponível em: https://www.unicamp.br/folclore/material/extra_conceito.pdf
CASCUDO, Luís da Câmara. Geografia dos Mitos Brasileiros. 2. ed. São Paulo: Global, 2002.
COMISSÃO NACIONAL DE FOLCLORE. Carta do Folclore Brasileiro. VIII Congresso Brasileiro de Folclore, Salvador (BA), 12 a 16 dez. 1995.
Disponível em: https://www.fundaj.gov.br/geral/folclore/carta.pdf
JAROUCHE, Mamede Mustafa. Uma poética em ruínas. In: ANÔNIMO. Livro das mil e uma noites, volume I: ramo sírio. 3. ed. Tradução e notas: Mamede Mustafa Jarouche. São Paulo: Globo, 2006, p. 11-35.
Como referenciar este artigo?
DAMASCENO, Thiago P. M. Seria O Que é Folclore? História na Medina (Artigos), 17 mar. 2021.
Disponível em: https://historianamedina.com/artigo-folclore