Era uma vez um califado tropical
onde as coisas iam para lá de mal
Havia quem dissesse
que seu califa era um eleito,
mas quem sabia das coisas
sabia que ele não tinha jeito:
não era descendente de profeta
e muito menos de messias
era feio, idiota e cheio de grosseria
vivia arrotando o que não comia
O califa bufão era mais que um bufão
também era um excelentíssimo
senhor charlatão
Dizia que era homem de valentia,
mas na hora do debate, corria
Dizia que melhor ninguém discursaria,
mas da sua boca só saíam patifarias
Dizia que era homem de muita atração,
mas sempre deixava sua esposa na mão
Dizia até que montaria um harém,
mas na hora H não acordava o Salomão
e ele não dava conta de ninguém
O califa bufão era mais que um bufão
também era um excelentíssimo
senhor arregão
Então ele pediu ajuda ao boticário
que vivia cheio de penduricalhos
e pilulazinhas azuis
famosas entre seus generais
que também tinham fama de maiorais,
mas não havia remédio ou reza braba
que fizesse crescer os seus bananais
O califa bufão era mais que um bufão
também era um excelentíssimo
senhor da disfunção
E o califado seguia de mal a pior
os preços do pão, da carne,
do leite e da vida subiam sem dó
e o país voltou às caravanas da fome
onde sofriam mais aqueles sem nome,
mas os seguidores do califa bufão
apertavam o passo feito boiada
e não admitiam para ninguém
que haviam metido todos numa cilada
O califa bufão era mais que um bufão
também era um excelentíssimo
senhor da aniquilação
Então veio de longe um sultão
a dar esperanças para o povo
que não via a hora de ter
alguma dignidade de novo
O califa bufão ficou assustado
e pediu ajuda para quem
estava ao seu lado
– Quem virá em meu socorro?!
– Eu não, senão morro! – disse o vizir.
– Quem será que me acode?!
– Eu não porque não tenho sorte! – disse o cádi.
O califa bufão borrou-se no seu trono
de onde não queria saber de abandono
e mancomunou com quem pudesse
para se manter no cargo como quisesse
com uma única e exclusiva condição:
que ele continuasse sendo o condutor
daquele navio sem capitão
O califa bufão era mais que um bufão
também era um excelentíssimo
senhor da corrupção
Não bastava ele ser vigarista
também era um baita racista
Não bastava ele ser perverso
também era o mais mentecapto do Universo
Ainda dizia que governava em nome de Deus,
mas não eram santos nenhuns dos atos seus
O califa bufão era mais que um bufão
também era um excelentíssimo
senhor da profanação
Comentando o Poema O Califa Bufão
Neste poema não me refiro a nenhum califa, vizir (primeiro-ministro) ou cádi (juiz) muçulmanos reais. A inspiração para esses versos veio de um sonho atípico e engraçado e do meu conhecimento como historiador. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência!
Um amigo, professor de Literatura, disse que esse é um poema satírico. Esse tipo de poema foi comum no trovadorismo português medieval. O Trovadorismo foi o primeiro grande movimento artístico e poético europeu (séculos XI e XIII.) Nesse contexto, a poesia portuguesa – lírica e satírica – teve duas grandes fontes: a poesia provençal (sul da atual França) e a poesia popular ibérica (atuais Espanha e Portugal). A influência ibérica contou com a criatividade de portugueses, galegos, castelhanos, árabes e outros povos.
Na modalidade da poesia lírica havia a cantiga de amor e a cantiga de amigo e, na modalidade da poesia satírica, havia a cantiga de escárnio e a cantiga de mal dizer. Esse meu amigo, professor de Literatura, disse que esse meu poema lembra muito essas últimas cantigas mencionadas, que faziam alusões a certas pessoas para criticar o exibicionismo, a ganância e outras coisas mal vistas ou risíveis.
Temos duas palavras de origem árabe no título. “Califa” é a forma portuguesa de khalīfa ou ḫalīfa, que significa “sucessor”. No contexto islâmico, “califa” faz referência ao sucessor do Profeta Muḥammad. Essa sucessão foi política e/o espiritual, a depender da vertente islâmica. De modo geral, os califas eram os soberanos dos “reinos” muçulmanos. A outra palavra é “bufão” – que vem de “bufo” (būh) – que significa “bobo” ou “fanfarrão”. Outra derivação de “bufo” é “bufaria”, que quer dizer “bugigangas” ou “mercadorias de pouco valor”.
Outras palavras de origem árabe nesse poema são: harém (ḥarām), “sagrado”, ‘inviolável”, setor feminino nas casas muçulmanas; penduricalhos, algo a se pendurar, “balagandã”, de “pendão” (band); sultão (sulṭān), “soberano”, “governador” e Allāh, “Deus” (ALVES, 2013).
Referências
EM 1º LUGAR O MEU AMIGO, professor de Literatura, que é tímido e não quer se expor.
ALVES, Adalberto. Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa Da Moeda, S. A., 2013.
BRANDINO, Luiza. Trovadorismo. Brasil Escola, 2022.
Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/literatura/trovadorismo.htm
PEREIRA, Helena B.; PELACHIN, Marcia M. Na trama do texto: língua portuguesa. São Paulo: FTD, 2004.
Como referenciar este conteúdo?
DAMASCENO, Thiago P. M. O Califa Bufão. História na Medina (Poemas), 26 set. 2022. Disponível em https://historianamedina.com/poema-o-califa-bufao